
30 de agosto de 2020
EM TEMPO DE QUARENTENA (2)
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EM TEMPO DE QUARENTENA (2)
Harry Wiese
Enquanto a lei é a chave ou a chave é a lei, meu portão permanece fechado. Percebo e recebo o mundo pelas tecnologias: o mundo virtual. Consola-me que o virtual e o real se aproximam e tornam mais coerente o entendimento dos feitos do dia a dia.
Minha comunicação com quem está além do portão também é virtual. As mensagens não necessitam de chaves. Leis me aprisionam em quarentena, mas não atingem meus pensamentos. Sinto que as ideias são superiores ao meu corpo e vagam pelo espaço para serem acessadas por quem necessitar e desejar.
Compenetrado no meu mundo real, as notícias que recebo não são boas. Hospitais, nosocômios, postos de saúde, ambulâncias e congêneres estão superlotados. Há quem precisa escolher quem vai viver e quem vai morrer: crudelíssima sina. A pandemia é superior ao socorro e o socorro é inferior ao apelo.
Se os hospitais estão lotados, as escolas estão vazias. É como se todo dia fosse domingo. Não se ouve o murmúrio da aprendizagem, nem a fala dos mestres. Mesmo com esforços, normas e leis para atenuar a situação, o dano é irreversível.
O trabalho nas fábricas e fora delas está com a motivação abalada, não tem êxito como antes, não tem a satisfação do dever cumprido. Para muitos não existe mais.
Os túmulos nos cemitérios são como grades ou cubículos, mais parecem covas de cultivos estranhos: plantações de cadáveres, sem perspectivas de êxito. Rezas, lágrimas e desespero ficam a distância.
A inumação, mesmo coletiva, seria silenciosa não fosse o barulhar de terra caindo sobre os caixões; o luto é familiar e a dor individual, fatos nunca vistos antes. Lembro-me do filósofo Martin Heidegger que disse: “Todo homem nasce como muitos homens e morre de forma única” e diferente.
As igrejas também são vazias. Os púlpitos estão sem sermões. Há quem queira pregar e há quem queira ouvir pregação, mas a lei é superior a Deus. Diante de tanto sacrilégio, sugiro apreciar as obras do criador: as flores também falam, os rios rumorejam e os pássaros cantam.
Apesar de tudo, há encantamentos. Músicas de antigas orquestras e cantores ressuscitam lembranças de tempos bons. Livros, por décadas esquecidos, voltam a ter poderes e conhecimentos inimagináveis. A televisão mostra filmes e jogos que cativaram emoções em tempos de euforia. Agora são emoções revisitadas. Revisitas permitem reavaliações, reinterpretações e até retomadas de atitudes equivocadas. Em tudo há insinuações e situações positivas, embora não pareça.
Em jogos revisitados já se conhece o resultado e o nervosismo é atenuado. Os lances impõem apreciação e análise de jogadores, táticas, esquemas, falhas e jogadas perfeitas. Revisitar é reviver. Não muda resultados, mas muda opiniões e posicionamentos.
Revisitar a História é um ato de respeito por quem viveu antes de nós e também teve suas dores e dificuldades, muitas vezes, superiores que as de agora. Revisitar a História é semelhante a revisitar livros, filmes e jogos. Permite absorver novas cognições, que podem levar a novas atitudes e comportamentos, pois de acordo com a escritora Clarice Lispector, “Uma história é feita de muitas histórias”. Que muitas histórias sejam contadas e recontadas.
Com a frase de Heráclito de Éfeso, nascido em 540 a.C. “Nenhum homem pode banhar-se duas vezes no mesmo rio... pois na segunda vez o rio já não é o mesmo, nem tão pouco o homem”, desejo construir o desfecho do meu texto.
Assim também será depois da pandemia. Os portões se abrirão e o mundo terá outro visual. Escolas, igrejas, hospitais e cemitérios serão diferentes, porque serão vistos e percebidos de formas diferentes, talvez com mais maturidade e profissionalismo. Os rios, hoje, quase estios, voltarão a correr velozes e a primavera trará novos ares. A liberdade será reconstituída, baseada na sabedoria do poeta Johann Wolfgang Goethe: “onde se deve procurar a liberdade é nos sentimentos, esses são a essência viva da alma”.
Que assim seja!

