Rua de Pedra
25 de agosto de 2020

Rua de Pedra

Categoria | Poesia

granito rosa

preto, cinza,

de outra cor que fosse

pura noção de pedra

no resplendor da montanha

monástica e severa

criada na solidão do tempo

solenemente exposta ao sol

enquanto as noites e os dias

te oxidam como metal

se oxida no fundo do mar

não és menos dura

tu que fostes arrancada

com brutalidade

de teu berço natural na montanha

onde dormias esquecida

por muitos séculos

agora dormes disposta

paralela e plana

indicando o caminho em vários

sentidos e direções

a milhares de anos

lavada pisada e repisada

gasta e polida

por milhões de pés que passaram por ti

ora por nobres a passeio

ora por escravos serviçais

descalços feridos e sangrando

somente tu poderás dizer-me

de quantos tipos de sangue

fostes dolorosamente banhada

quem te vê apenas uma pedra

de rua urbana escaldante e sonora

polida como espelho pelo tempo e uso

lavada escovada de teu pó e sangue

não sabem de quantos segredos és feita

certamente não os contarás a ninguém

apenas ouvirão de ti um imaginário

de acontecimentos passados dia após dia

acumulados como a montanha

que eras de pedra agora de fatos.

Que mãos rudes e hábeis te moldaram

neste lugar firme e plano

neste teu rejuntamento quase regular

nas tuas linhas da vida

leio como se fossem mãos de pessoas

como tudo vês e tudo guardas

um passado de que és testemunha

a cada dia mais perfeita

mais que perfeita

milhares de anos terás pela frente

teu tempo será eterno

verás muitas coisas ainda

que serão guardadas em ti

para todo o sempre

como segredos de pedra.

Quantos já levaram de ti entre os dedos

ou grudado na sola do pés

um grãozinho como lembrança

e tu absorvestes o calor

e tirastes muitos mais

dos que pisaram em ti do que destes.

Os que vistes passar já se foram

todos num único sentido

por que a vida é estrada

de mão única sem volta

não importa qual direção

quem de ti se serviu já se foi

pisando repisando

ou tristemente carregado

deixando apenas uma marca invisível

no teu polimento lustroso em dias de chuva

brilhante em dias de sol.

Eu te olho. Vejo espelhado em ti

muitos acontecimentos passados e futuros

fotografados em preto e branco

imagens eternas por muitos séculos ainda.

Agora que estás silenciosa

caminho em ti como num tapete translúcido

que se estende lentamente sozinho

deslizando dentro da noite escura

tortuoso ou reto em aclive ou declive.

Iluminada apenas pela lua solitária

como testemunha fria e distante

guia-me os reflexos em teu chão

escuro e liso és meu caminho

tendo apenas por companhia a sombra

que se alonga além de mim mesmo

como se fosse eu andando

na minha frente antecipado.

– Escuta ! Alguém grita na minha frente

–  Que pecado! – alguma coisa medra

tua sombra a frente de teu corpo

deslizando neste chão duro de pedra.

Agosto de 2006, poema do livro

“Caminhando… um passo à frente”

de Ivo Ferrari

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