EM TEMPO DE QUARENTENA
29 de agosto de 2020

EM TEMPO DE QUARENTENA

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EM TEMPO DE QUARENTENA Harry Wiese Estou só, Deus e eu. Se não acreditasse Nele seria único, eremítico, quase exilado. Lá fora a rua está silenciosa e inabitada. O que nunca viria a ocorrer se tornou presente e o que era dos outros agora está comigo. Quero sair, mas o portão está fechado. A lei é a chave ou a chave é a lei? “E agora, José? Com a chave na mão/ quer abrir a porta,/ não existe porta”.

Peço a presença de Alberto Caieiro e ele logo se aproxima. Ele também está em quarentena, na minha biblioteca diminuta e foi logo murmurando sua poética: “Nas cidades a vida é mais pequena/ Que aqui na minha casa no cimo deste outeiro./ Na cidade as grandes casas fecham a vista à chave,/ Escondem o horizonte, empurram o nosso olhar para longe/ de todo o céu,/ Tornam-nos pequenos/ porque nos tiram o que os nossos olhos/ nos podem dar...”. Restou-me a casa solitária, mas não sou solidão. O silêncio me acaricia. Aprecio a noite. Da varanda ouço a sonoridade dos longes, mas o múrmur do rio não vem, está estio. Ouço o som das estrelas, são os cânticos dos viventes que já se foram e brilham para Ele, o grã-criador do universo. Manuseio a vitrola esquecida, meu Deus do céu, quanto tempo! Logo vem o som dos saxofones de Billy Vaughan: La paloma, Blue Tango, Laura... e eu redesfaleço numa paixão sem limites. A cidade dorme. Por que tanto sono, Senhor! Estou cansado, mas estou acordado. Hei de ver o céu, o Cruzeiro do Sul, a cruz de outrora apreciada e esquecida. Está lá com vestígios de eternidade. Deus está lá? – Não, Ele está onde nossos pensamentos não conseguem chegar. Para apreciar o firmamento não necessito de chaves, senhas e leis, porque “As leis não bastam. Os lírios não nascem da lei”, disse Drummond. Por que reclamaria do portão lacrado e da cidade solitária? Protegido mergulho nas longas distâncias e me vejo criança de calça curta e pés no chão. Menino veloz percorro as veredas beira-rio. Vou a longínquas terras, mas ainda cá me edifico. Ressurgem as manhãs de sol, passarinhos cantando, sonhando essências e aguardando a vida. Agora, aqui estou. Portão fechado e a vida em tempo de se findar. Mas a consoada, meu velho Bandeira, ainda não está pronta! Ainda há de demorar! Percebo o mundo com suas tecnologias, há tecnologias para tudo, maravilhas nunca antes imaginadas, mas estou só, só Deus e eu. Soledade e paixão. O portão está fechado e a chave é a lei. A tecnologia não é a lei. A ciência se constrói nas imperfeições. Um novo tempo há de vir. Meu portão há de se abrir e então plantarei poemas ao longo da rodovia. Seria um infortúnio não se preocupar com tempestades. Mesmo assim a solidão é bênção em tempos estios e de preocupações. A bonança chegará. Estou em quarentena e teço minhas reflexões. Até quando? A resposta é a história dos tempos! Assim seja!

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